terça-feira, 6 de maio de 2008




Não ter medo nem da vida nem da morte


"Continuai a praticar a meditação sobre a interdependência durante um momento e assinalareis uma mudança em vós. Vossa perspectiva alargar-se-á, e ireis dar-vos conta que considerais todos os seres vivos com compaixão. Os rancores e os ódios que pensáveis indestrutíveis começarão a desvanecer-se, e tornar-vos-eis atento para cada ser. Mais importante, não sereis mais importunado pela vida e pela morte.. Talvez já tereis ouvido falar de Erwin Schrödinger, que descobriu a mecânica das ondas. Após ter reflectido sobre o si, a vida e a morte, o universo, a unidade e a multiplicidade, escreveu:

«Assim, podeis lançar-vos de chapa, de ventre sobre o solo, estender-vos sobre a Terra Mãe, com a convicção absoluta de que não fazeis com ela senão um e que ela não faz senão um convosco. Estareis assim firmemente enraízado e mais invulnerável. É tão certo que ela vos engolirá amanhã, como certo também que ela vos fará renascer para vos afrontar de novo esforços e sofrimentos. E não simplesmente «um dia talvez»: agora, hoje aonde ela vos dá nascença, não uma vez, mas milhares e milhares de vezes, da mesma maneira que cada dia ela vos engole milhares de vezes. Para a eternidade e para sempre, há somente agora, um só e mesmo agora; o presente é a única coisa que não tem fim (8)

Se uma tal visão - como a de Schrödinger - se encontra bem presente na nossa vida quotidiana, seremos impassíveis perante a vida e a morte.

O passado, o presente e o futuro na ponta de um cabelo

A opinião de Schrödinger sobre o tempo encoraja-nos a dar mais um passo na nossa meditação sobre a interdependência. Nossas concepções sobre o interior e o exterior, o uno e o múltiplo, começam a desaparecer quando observamos a natureza do inter-ser e da interpenetração de todas as coisas. Mas estas ideias não se desvanecerão completamente enquanto crermos que o espaço absoluto e o tempo absoluto são necessários à aparição de todos os fenómenos. Nos primeiros tempos da escola búdica do Dharmalaksana («Meditação sobre os fenómenos»), o espaço era considerado como uma realidade independente do reino do nascimento e da morte. Quando a escola Madhyanika («Meditação sobre o nóumeno», ou natureza essencial) começou a desenvolver-se, o tempo e o espaço eram descritos como falsas concepções da realidade que dependiam uma da outra para a sua existência. Desde que o princípio do inter-ser e da interpenetração do Sutra Avatamsaka se recusa em aceitar os conceitos de interior/exterior, grande/pequeno, um/vários como reais, ele rejeita o conceito de espaço enquanto realidade absoluta. No que respeita ao tempo, a distinção conceptual entre passado, presente e futuro é também destruída. O Sutra Avatamsaka diz que o passado e futuro existem no presente, o presente e o passado no futuro, o presente e o futuro no passado, e, ao cabo e ao resto toda a eternidade num Ksana, o momento mais breve existente. Para resumir, o tempo, como espaço, é marcado pelo selo da interdependência, e um instante contém três tempos : o passado, o presente, o futuro.


O passado no presente e no futuro,
O futuro no presente e no passado,
Três tempos e vários éons num
instante
Nem longo, nem curto - é a libertação.

Posso penetrar no futuro
incluindo toda a eternidade num instante.


O Sutra Avatamsaka acrescenta: « Não somente um grão de poeira contém nele mesmo o espaço "infinito", ele contém também o tempo "ilimitado"; num só ksana encontramos simultaneamente o tempo "infinito" e o espaço "ilimitado" (9)

O passado, o presente, o futuro sobre a ponta de um cabelo e também inumeráveis mundos de Buda."


(8) Edwin Schrödinger, My View of the World (London: Cambridge University Press, 1964)
(9) Os termos ilimitado (vo cung) e infinito (vo tan) estão entre aspas porque os utilizo provisoriamente.


in Thich Nhat Hanh, La Vision Profonde, De la pleine Conscience à la contemplation intérieure, Paris, Albin Michel, Spiritualités vivantes, pp.119 e sgs.


Tradução: L.B.T.


Apontamento: Poderíamos alegar que o autor ao parecer refutar os conceitos acaba afinal por servir-se deles. Sim, mas serve-se deles para melhor fazer com que eles se rebatam sobre si, na sua nulidade, enquanto considerados 'como tais' (ser enquanto ser, p.ex.), na sua reificação. Ao ponto de, nesse movimento não deixarem de inscrever um novo sentido que abra um diálogo latente mas ainda não suficientemente aberto entre a força das tradições - espirituais, no fundo - Oriental e Ocidental.
Esse movimento a que aludimos acima revela-nos a "marcialidade" do pensamento Oriental. 'Marcial' não no sentido banal bélico e militar. Como se sabe, as artes marciais estabelecem uma relação complexa entre as perspectivas de 'auto' e de 'alter', entre a autodefesa e o combate consigo mesmo. Daí o uso da força 'autopulsada' que consiste numa tensão em con-tensão, em parada: num autodomínio. Como uma arte do corpo, uma dança, um ritual, e um exercício espiritual de meditação que cada um, só ou com os outros, exerce como uma prática. Onde 'físico' e 'mental' ganham outras tonalidades na dimensão perceptiva (ou num outro espectro de percepção).



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