sexta-feira, 25 de abril de 2008

Humbaba...



Humbaba. O vigilante dos bosques e dos cedros do Líbano.
Da antiquíssima, fabulosa, epopeia de Gilgamesh escrita na Babilónia há mais de 3 milénios...

" Humbaba", Téc.mista sobre madeira, 80x100cm+-, 2003.
Painting by Luís Tavares
Colecção do artista


(...)

"Quando desceram da montanha, Gilgamesh empunhou o machado e abateu o cedro. Quando Humbaba ouviu o ruído ao longe enfureceu-se e gritou: «Quem é este que violou os meus bosques e cortou o meu cedro?»Mas o glorioso Shamash gritou-lhes do céu: «Ide em frente, não tenhais medo.»Mas agora Gilgamesh estava dominado pela fraqueza, pois o sono tinha-se apoderado dele de repente, um profundo sono o dominava; jazia no chão, estendido e sem palavras, como num sonho. Quando Enkidu lhe tocou não se levantou, quando lhe falou não respondeu.

(...)

Por fim, Gilgamesh ouviu-o; vestiu a couraça, A voz dos Heróis, de trinta ciclos de peso. Envergou-a como se ela fosse roupa leve que tivesse trazido, e ela cobriu-o por inteiro. Fincou-se no chão como um touro que fareja a terra, e os seus dentes cerraram-se.

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Então Enkidu, o fiel companheiro, respondendo-lhe, pediu:«Ó senhor, tu não conheces este monstro, e essa é a razão porque não tens medo. Eu, que o conheço estou apavorado. Os seus dentes são presas de um dragão, o seu aspecto é como o de um leão, corre à carga com a velocidade da inundação, um seu olhar esmaga as árvores da floresta como as canas de um pântano. Ó senhor, se assim o queres, podes seguir para essa terra, que eu voltarei para a cidade.

(...)

Mas Gilgamesh disse: «A imolação e o sacrifício não são ainda o que me cabe, a barca dos mortos não descerá, nem o pano de três dobras será cortado para o meu sudário. Não será já que o meu povo ficará desolado, nem que a fogueira se acenderá na minha casa, nem a minha morada será queimada pelo fogo. Dá-me hoje o teu auxílio, e tu terás o meu: que poderá interpor-se entre nós dois? (...) mas nós iremos em frente e fixaremos os nossos olhos nesse monstro. Se o teu coração tem medo atira fora o medo; se nele há terror, atira fora o terror. Pega no teu machado e ataca. O que deixa o combate inacabado não fica em paz.»Humbaba saiu da fortaleza de cedro. Então Enkidu gritou:«Ó Gilgamesh, lembra-te agora das tuas jactâncias em Uruk. Em frente, ataca, filho de Uruk, não há nada a temer.»Quando ouviu estas palavras, a sua coragem regressou; e respondeu:«Apressa-te, cai em cima dele, se o vigilante ali estiver, não deixes fugir para os bosques, onde desaparecerá. Ele vestiu o primeiro dos sete esplendores, mas não ainda os outros seis; apanhêmo-lo antes que esteja armado.»
Como um touro selvagem em fúria, farejou o chão; o vigilante dos bosques virou-se cheio de ameaças, e gritou. Humbaba veio da sua fortaleza de cedro. Balançou a cabeça e sacudiu-a, ameaçando Gilgamesh; e nele fixou o seu olhar, olhar da morte. Então Gilgamesh chamou Shamash, e as suas lágrimas corriam:« Ó glorioso Shamash, eu segui o caminho que tu ordenaste, mas agora, se não enviares socorro, como escaparei?»O glorioso Shamash ouviu a sua oração e convocou o grande vento, o vento do norte, o turbilhão, a tormenta e o vento gelado, a tempestade e o vento que queima, eles vieram como dragões, como um fogo ardente, como uma serpente que gela o coração, como uma inundação destruidora e a forquilha do relâmpago. Os oito ventos ergueram-se contra Humbaba, bateram contra os seus olhos; ele estava imobilizado, incapaz de avançar ou recuar.

(...)

Abateram sete cedros, cortaram e amarraram os cedros e estenderam-nos no sopé da montanha, e sete vezes Humbaba foi humilhado na sua glória. Ao declinar a sétima chama, chegaram à sua toca. Ele bateu na coxa em sinal de escárnio. Aproximou-se como um nobre touro selvagem laçado na montanha, como um guerreiro de cotovelos amarrados. As lágrimas caíram-lhe dos olhos e estava pálido.«Gilgamesh, quero falar. Nunca conheci mãe, não, nem um pai que me criasse. Nasci da montanha, ela me criou, e Enlil fez de mim o guarda da floresta. Deixa-me ir em liberdade, Gilgamesh, e serei teu servo, e tu serás o meu senhor. Todas as árvores da floresta que eu guardei na montanha serão tuas. Eu as cortarei e te construirei um palácio.»Pegou-lhe pela mão e levou-o a sua casa, e por isto o coração de Gilgamesh estava movido de compaixão. Jurou pela vida celestial, pela vida terrena, pelo próprio mundo inferior:«Ó Enkidu, não deveria o pássaro apanhado numa armadilha regressar ao ninho, e não deveria o homem cativo regressar aos braços de sua mãe?»Respondeu Enkidu:«O mais forte dos homens será derrubado pelo destino se não tiver entendimento.

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Ele obstruirá a estrada da montanha contra ti e tornará impraticáveis os caminhos.»

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Mas Gilgamesh disse:«Se lhe tocarmos, o esplendor e a glória da luz extinguir-se-ão confundidos, a glória e o encanto desaparecerão, os seus raios haverão de apagar-se! Disse então Enkidu a Gilgamesh:«Não será assim, meu amigo. primeiro apanha o pássaro;

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Gilgamesh ouviu a palavra do seu companheiro, empunhou o machado, tirou a espada da cinta e atingiu Humbaba com uma espadeirada no pescoço, e Enkidu, seu companheiro, vibrou o segundo golpe. Ao terceiro golpe Humbaba caiu. Então seguiu-se a confusão porque era o guarda da floresta que eles tinham deitado por terra.

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Eles atacaram os cedros e os sete esplendores de Humbaba extinguiram-se.

(...)

Colocaram Humbaba diante dos deuses, diante de Enlil; beijaram o chão e baixaram o sudário, e colocaram-lhe a cabeça diante dele. Quando viu a cabeça de Humbaba, Enlil virou-se contra eles.«Porque fizestes isso? Que desde agora o fogo arda nas vossas faces e coma o pão que comerdes, e beba onde vós beberdes.»Então Enlil tornou a pegar na chama e nos sete esplendores que tinham sido de Humbaba: deu o primeiro ao rio, e concedeu dois ao leão, à pedra da execração, à montanha e à temida filha da Rainha do Inferno.Ó Gilgamesh, rei e conquistador da temível chama, touro selvagem que saqueia a montanha e atravessa o mar; glória a ele! E dos bravos a maior gloria é de Enki!"


Do livro "Gilgamesh", Versão de Pedro Tamen do texto inglês de N. K. Sandars, Lisboa, Vega, 1989, pp.33 e sgs.

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