A Vacuidade torna-se Fenômeno, os Fenômenos tornam-se Vacuidade
Taisen Deshimaru Rôshi
Kû sokû ze shiki. Shiki sokû ze kû, devemos ir além, transcender, ao mesmo tempo, Shiki (fenômenos) e Kû (vazio). Devemos estar além da diferença e da similitude. Devemos ir além de Shiki e de Kû, além do pensamento e do não-pensamento. Nesse momento, atingimos a consciência Hishiryô . A interação é a lei de manifestação do poder cósmico fundamental; em outras palavras, ao manifestar-se, o potencial cósmico se dispersa e materializa a energia cósmica, que se divide em parcelas e se dispõe de acordo com uma ordem regida pela lei da interdependência. Somente essa lei dá à matéria a aparência fenomenal.
Se olhardes para Kû, vereis também Shiki.Kû sokû ze shiki.Se virdes Shiki, olhareis igualmente para Kû.
Shiki sokû ze kû.
Todo o Sutra do Hannya Shingyô, o Prajna Paramita Sutra, gira em torno dessa fórmula. Se compreendermos tal relação tudo se tornará fácil. Não se trata de pensar nisso com o cérebro, mas de compreendê-lo plenamente através do corpo. A partir dos fenômenos, Shiki, da nossa vida cotidiana, voltar a Kû, zazen. E de Kû voltar a Shiki para ajudar todos os seres e harmonizar-se com eles.Se todos os dias nos concentrarmos uma ou duas horas no verdadeiro zazen, poderemos depois mergulhar nos fenômenos, voltar ao verdadeiro eu e espalhar nossa sabedoria pela vida quotidiana. Zazen torna-se então o leme do nosso movimento na vida.
A verdadeira concentração não é pensada nem não-pensada. Está além do pensamento, o pensamento absoluto. É o retorno ao Kû original, por efeito da concentração.
A concentração em Kû contém, virtualmente, a expansão em Shiki.
A expansão fenomenal de Shiki contém, virtualmente, a volta à concentração em Kû.
Encontramos em Kû o infinito e o eterno. Desse modo, Kû, sinônimo de nirvana, outra coisa não é senão o Caminho do Meio.
Mujô a mudança, não-nascido, sem começo nem fim.
Sem nascimento, sem fim, somente mudança.
Não há começo, não há fim do cosmo. Num rio, vemos bolhas na água da corrente. A água torna-se bolha e, logo, torna-se água de novo.
Quando morremos, nossa vida não acaba. Voltamos ao cosmo, como as bolhas que estouram no rio. Devemos compreender a vida eterna.
Com freqüência, as pessoas amam a pureza e detestam a sujeira. Na sua origem, porém, todos os fenômenos, todas as existências do cosmo não são puras nem impuras. Tudo é idêntico. Mas pelo comportamento e pelo pensamento, as pessoas sujam e criam as separações. Em nosso globo, a terra, as montanhas, os rios, as florestas, os oceanos.. tudo é sem sujeira e sem pureza. É a natureza.
A purificação, a terra pura, não existem em outro país, nem depois da morte. A terra pura há de ser construída aqui e agora.
Se tivermos o espírito bom, a consciência precisa, a palavra exata, o comportamento adequado, se a boca, o corpo, a consciência, essas três atitudes forem corretas, o meio será justo.
Só que, pela percepção, pelos sentidos, pela consciência, pelas sensações, tudo muda. As coisas tornam-se às vezes puras, às vezes impuras, os desejos nascem...
Pureza, sujeira, não se pode decidir.
Nossa personalidade, nosso espírito original, é sem pureza e sem sujeira, e o cosmo também.
No nascimento, a consciência do bebê não está suja. Ele ignora a pureza ou as sujeiras. Mas, depois, a hereditariedade dos pais, o ambiente, as pessoas que o cercam, a educação não raro errada, influem nele progressivamente. O karma ignora a compaixão, o resultado, o efeito e vice-versa. Onde está o erro? O mérito? Só a consciência do ser humano decide a respeito dessas concepções.
Não há dualidade. Sem começo nem fim. Sem sujeira nem pureza. Sem crescimento nem decrescimento. Podemos ilustrá-lo com a metáfora da água e das vagas. Hoje cedo há tempestade e, de certo, grandes vagas no oceano. Quando a tempestade acabar, as vagas decrescerão, mas a água do mar não terá crescido nem decrescido.
A impermanência é a mudança perpétua de todas as coisas, portanto a não-entidade, a existência sem substância própria. No momento em que nasce, a chama morre; a chama que arde neste instante não tem nada em comum com a do instante precedente; a chama é a representação viva da não-substancialidade.
O potencial é o único dado permanente contido em cada uma das formas do manifestado, impermanente e fruto da interdependência; o potencial é permanente porque é eterno em tudo o que é e tudo o que não é. É independente porque é a causa e a condição de tudo o que existe; é o motor que produz e faz progredir o manifestado. O potencial existe em cada uma das formas-forças e em todas as relações que as ligam, desde o infinitamente pequeno até o infinitamente grande.
Dentro de toda manifestação permanece a plenitude da potencialidade, a qual contém a totalidade da manifestação. Essa potencialidade é o poder cósmico fundamental, o Kû, o nada, o não-manifestado e é ainda o grande Tudo e o manifestado no que o Tudo e o manifestado têm, em sua mudança evolutiva, de não-manifestado e de manifestação em potência, como a semente é o não-manifestado da árvore e a contém em potência.
Seja como for, todas as existências são Kû sem fenômeno númeno. Tudo existe sem existir.
Tudo só existe na mudança e por ela; pois o que subentende a mudança é o potencial. Devemos compreender que Mujô, a mudança, é a eternidade. No Zen, não há ruptura entre o material e o espiritual; toda impressão é, ao mesmo tempo, espiritual, e fica registrada nos neurônios do cérebro em forma de informação atualizável a qualquer momento.
As sementes de karma depositadas perpetuam-se no espírito depois da morte; deverão manifestar-se necessariamente em função da lei universal, segundo a qual toda semente, quando chega o momento, germina ou perece (transforma-se). Formarão os dados hereditários do recém-nascido, de que este está investido desde a ovulação, e cujo potencial se contém no esperma do pai e no óvulo da mãe.
Se a semente não germina, precisa transformar-se. E o que acontece durante o zazen. O mau karma aparece libertando-se do inconsciente; mas pela ação da consciência do zazen, desvencilhada das seis percepções e da ignorância que delas resulta, o mau karma pode acabar, isto é, pode ser transmudado e regenerado na consciência pura original.
Esvaziado assim das sementes do karma, o espírito se abre para o eterno imutável, funde-se no potencial cósmico infinito, não sujeito à impermanência, nem à interdependência, não-nascido, não-criado, sem começo nem fim, que é a realidade eterna de Kû.
Em Kû, nada aparece do que pertence aos domínios visual, auditivo, olfativo, tátil e gustativo. Como não há meio, não existe observação objetiva, nem subjetiva; não existe consciência. É o fim total. Absolutamente nada. Em Kû, completamente Kû, zero absoluto.
Se já não há olhos, já não há forma, já não há percepção visual. E, visto que não podemos ver, nada se eleva da faculdade visual. Se não se estabelece a relação entre o órgão subjetivo e o fenômeno objetivo, não há Shiki que possa aparecer e a consciência não se manifesta.
A fonte original do espírito não é, de maneira alguma, ignorância nem obscuridade. É totalmente pura.
Antes do nascimento o homem é ignorância. Seu nascimento é a atualização na matéria, ou encarnação, de sua consciência ignorante, que durante a transmigração permaneceu na consciência eterna. A ignorância é o agente produtor da ação.
A ignorância, fonte original das ilusões, determina a ação. A própria ação é karma, produto da ignorância. Transposto ao plano humano, esse fator primordial, a ignorância, reparte-se entre:
de um lado, a ignorância dos pais, que gera o ato sexual e kármico e provoca a fecundação;
de outro lado, a ignorância kármica da consciência do falecido, que quer encarnar-se e influir no ato sexual dos pais.
As duas causas interdependentes conduzem à formação embrionária. A consciência do falecido encarna-se desde o instante da fecundação, manifestação da energia cósmica. Dessa maneira, os três elementos. A saber, o pai, a mãe e a consciência do falecido, determinam o aparecimento do feto, e são os três igualmente responsáveis, e não apenas os pais, pois o karma passado quer realizar-se, e deve encontrar o suporte material para manifestar-se.
O satori só existe em função da ignorância e das ilusões. Desse modo, a ignorância e a ilusão são a condição necessária da existência do satori. E já se disse: Bonno soku bodai; as ilusões são o satori.
Não é, portanto, necessário querer eliminar a ignorância, pois ela não tem existência real e nós não temos númeno.
A ilusão não é uma coisa fixa, nem a substância de nosso espírito, mas um visitante, uma coisa que vem do exterior; é assim no tocante à cólera, à ignorância, ao medo, à ansiedade, à paixão, aos desejos. Por exemplo, sem o vento, as vagas não aparecem na superfície do lago. No que se refere às ilusões, a mesma coisa. Se não recebermos estímulos do exterior, elas não se elevarão. Visitantes, vêm do exterior. Ainda que recebamos excitações do meio, se nesse momento preciso não estivermos apegados, a verdadeira Sabedoria aparecerá.
O sofrimento é tanto físico quanto psicológico, sentimental, intelectual ou racional.
Desde que não podemos satisfazer nossos desejos, sofremos. Buda explica as condições do sofrimento. Quanto mais apego tivermos, mais se espalharão as ilusões. E se não pudermos satisfazê-las, acabamos por suicidar-nos. Ser muito apegado aos desejos equivale a ser como uma bomba.
Quanto mais aumentam os desejos, tanto mais se complicam os sofrimentos.
Todos os fenômenos cósmicos, todas as existências cósmicas constituem o potencial temporário existente, ou manifestado, atualizado no momento. Cada qual depende da lei da interdependência, em que a multiplicidade dos fenômenos depende da multiplicidade das relações que os subentendem. Por isso mesmo, ainda que os fenômenos temporários tomem forma ao nascer, se transformem e desvaneçam, sua substância não foi produzida nem destruída; tampouco aumentou ou diminuiu. Pois essa substância é o próprio poder cósmico fundamental, eternamente imutável, potencialidade suprema da qual procedem todas as potencialidades fenomenais, existências em perpétua mudança; suas formas aparecem e desaparecem ao sabor das interferências cósmicas rigorosamente ordenadas, depois desaparecem, desagregando-se, liberando a essência que reencontra a própria origem.
(Deshimaru, Taisen. O Anel do Caminho: Palavras de um Mestre Zen.Textos reunidos e redigidos por Evelyn de Smedt e Dominique Dussaussoy;
tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Pensamento, 1995.Pág. 121-125. Clique
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