segunda-feira, 28 de julho de 2008

" O gesto silencioso não é o único meio pelo qual se actualiza o nível primário da Realidade. No mínimo pode-se dar mão à linguagem, à palavra formada, para actualizar aqui e agora a Verdade eterna:

Um monje perguntou um dia a Fêng Hsûeh (896-973): " A palavra altera a transcendência (da Realidade) e o silêncio altera a sua manifestação. Como combinar palavra e silêncio sem que se altere a Realidade?"
O mestre respondeu: " Eu me recordaría de uma paisagem primaveril que contemplei um dia no Chiang Nan. As perdizes traquinavam piando entre as flores perfumadas, que estalavam precisamente então."

O monje havia dito: se usamos as palavras para descrever o nível primário da Realidade, a unicidade articulada original articular-se-à inevitavelmente a entidades limitadas. Se, pelo contrário, nos calamos, tudo se funde no Nada eterno e o aspecto fenoménico da Realidade desaparece. Daí a pergunta: como podem combinar-se palavra e silêncio de forma a que a Realidade absoluta se apresente segundo os seus aspectos?
Em lugar de responder ao monje dizendo-lhe como combinar palavra e silêncio, o mestre Fêng Hsûeh faz-lhe compreender directamente o nível primário da Realidade como uma combinação de silêncio e palavra. Para o compreender correctamente, teremos de apreender e guardar em nosso espírito que a encantadora paisagem primaveril aqui evocada por meio de palavras foi extraída das profundidades da memória. É uma paisagem, longínqua tanto temporal quanto espacialmente do lugar em que se encontra o poeta. Por outras palavras é uma paisagem não existente. Todavia, enquanto é evocada pela memória, a paisagem está aí, assombrosamente vivaz. Os murmúrios emitidos pelas perdizes não são escutados nesse ponto espacio-temporal da realidade exterior, mas numa dimensão distinta, as perdizes piam indubitavelmente por entre as flores perfumadas. Todos os elementos do poema, compreendido o próprio sujeito, o Eu, estão de esse modo e ao mesmo tempo ausentes e presentes num mesmo e único momento. É uma combinação particular de silêncio e de palavra."


Toshihiko Izutsu, El Kôan Zen, p.36.
Tradução de Luís de Barreiros Tavares



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